quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

NO NATAL

NO NATAL

No oco de dentro, tudo morto e escuro. Ele abriu o armário, pegou o guarda-chuva. Olhou-se no espelho, achou-se envelhecido, cansado, os cabelos grisalhos não ajudavam a face pálida. Mas dirigiu-se para a porta da rua, resoluto. Não, não sabia aonde iria. Estava indo para a rua. Apesar da chuva.
Na calçada. Ele estava na calçada debaixo da marquise. Chovia. Ele tinha de ir a um bar, ou a um restaurante qualquer. Já não agüentava ficar em casa, sozinho. Tinha preparado o seu Natal para passar sozinho em casa, sua ceia. Intocada. Nos dias anteriores se organizara, comprou um pouco de peru, castanhas, um bolo. Colocou a melhor toalha na mesa, arrumou tudo, até com certa beleza e elegância, graças às taças de cristal, herança da avó. Bacará. Mas não. Não agüentou ficar ali, vendo a solidão no vídeo da TV. Resolveu partir para a conquista da rua. Mas já era tarde, tudo estava parado, morto. A cidade dormia em silêncio. Ninguém mais andava na noite, naquela região perigosa, ali. Por isso, ele estava parado, olhava a pesada chuva, não se animava a atravessar a rua, debaixo da marquise. Que fazer?
Lembrou-se da Missa do Galo que já devia ter acontecido: Que horas são? – Não trouxera relógio.
Foi quando na esquina despontou um táxi, era sua sorte. Faz um sinal, aflito. O taxista, mal-humorado, dobrou, veio. Parou, ele se jogou lá dentro, como dentro da barca da salvação.
– Para onde?, perguntou o taxista.
Ele não soube responder.
Rodaram pelo Centro sem rumo, à procura de um lugar onde ele pudesse passar a noite de natal, o restante da noite de Natal. Mas tudo fechado. Rumaram para a Zona Sul contudo. Já era muito tarde, ou não abriram, ou já tinham fechado os bares e restaurantes. Finalmente, no final do Leblon, um pequeno lugar, muito conhecido seu, ainda aberto.
A casa cheia, ruídos e bêbados. Ótimo, pensou, já não estamos sós. O primeiro uísque bebido em pé, no balcão, meia hora depois vagava a mesa. O segundo e terceiro uísque bebeu entre conhecidas lembranças tristes e vagas que assaltavam, assassinas. Sim fora ali. Naquele mesmo lugar. Ele olhou e viu quando Ana lhe falara, anos atrás. Contara tudo, de chofre. Sem introdução. E dissera que já estava com o outro. "Que belo lugar, disse para si, apropriado, para passar este natal solitário!" Mas foi o único. Resolveu comemorar não sabia o quê. Depois do terceiro uísque, sentiu-se melhor, meio faminto de vida, e encomendou um peixe que ali se comia desde a época de Aninha. Mas a refeição permaneceu na mesa, ele via o dia vazio, que estava nascendo o dia, e a chuva, através da vidraça, fina, persistente. E olhava em volta à sua procura, as pessoas pareciam estranhas, as vozes cada vez mais longínquas. Cantavam. À sua volta cantavam. Por que aquilo não o contagiava? Por que no oco de dentro tudo morto e escuro?
E a chuva parou, o sol levantou-se, ele pediu a conta, pagou e partiu em direção à praia. Atravessou a rua, cruzou com uns homens que corriam, atléticos. O mar estava limpo, plácido, como lago. Um espelho de mar. Num canto das pedras percebeu um estranho e gordo velho, encolhido, agachado. Tocava o mar com os dedos. Era um velho gordo, olhava fixamente o mar. A barba branca. Olhava fixamente o mar. Mais de perto, quase a seu lado, vejo quem era. No oco de dentro tudo já não estava morto e escuro: O sol, um enorme sol, brilhava no horizonte desperto. O velho olhava o mar. Tirava barquinhos de papel do saco de brinquedos e os punha sobre a água. Os barquinhos partiam, em direção ao outro lado do mundo.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Noite de Natal



Noite de Natal

Rogel Samuel

Magro, longa barba, vestido da sujeira que se encruava no seu corpo como uma nova pele, as roupas em farrapos fétidos, o velho mendigo naquela noite saiu do lugar onde morava feito de pedaços de papelão e latas encontradas no monturo em frente. Ninguém sabia se ainda tinha família. Saiu e olhou para os lados, prosseguiu pelo espaço deserto, chuvoso. A noite escura mais realçava sua aparição de fantasma e ele via, ao longe, a grande árvore de natal da prefeitura acesa numa praia distante. Depois ele desceu a encosta que contornava o lixão aonde ia como os outros todos os dias buscar alimento, tomou a estrada que ia dar no Aeroporto velho e caminhou sem rumo. Era noite de Natal. Nas dobras de sua consciência esquecia quem era, quem tinha sido e aquela estrada deserta descrevia um arco que se estendia até a amurada do mar. Mas vagamente se lembrava que quando criança pulava numa pequena praia e se lançava ao mar do Nordeste antes de vir para o Sul. Como por um cortinado que se abria enevoado, ele reviu sua cidade natal, os irmãos e primos, a mãe Aurora, o tio Rigoberto. Sim, a noite estava escura, mas se via, ao longe, a grande árvore de natal da Prefeitura acesa.
Naquela estrada deserta ele descia no meio da noite. Não havia ninguém naquela zona, e ao longe os automóveis da noite passavam pela estrada rumo à costa Leste da cidade. Não havia ninguém por perto além do céu escuro e do ruído das pedras úmidas pelas curtas ondas do mar calmo e sujo. Ele desceu a escadaria velha molhando os pés. Uma vaga sensação de alegria inundou seus olhos de lágrimas, pois ele se lembrou da Ponta do Caranguejo onde sua família se banhava aos domingos. A noite estava escura e ele via, ao longe, a grande árvore de natal da prefeitura acesa.