O VÔO VAZIO
Rogel Samuel
Ah, que quando abri
meus olhos não, não nos primeiros instantes, não, mas logo compreendi que não
sabia onde estava. Aquilo, aquele ruído grave, surdo, me deixava inerme, e
devia estar naquela posição desde muito tempo, ali e sim, era importante ver e
entender o que se passava, era realmente urgente, eu estava sozinho naquele
avião, e o vôo prosseguia e eu estava em pleno ar.
Era uma aeronave
grande, MD-11, de 285 lugares, capaz de carregar 280.320 quilos e viajava a 890
km por hora.
Talvez estivesse ali
por acaso, esquecido, mesmo restasse ali para morrer. Costumo tomar uns
comprimidos fortes para dormir nos vôos demorados, depois de me prender bem com
o cinto de segurança na poltrona. Porventura todos os outros passageiros teriam
saído, pulado, estaria eu naquela aeronave e assim conduzido para algum lugar
em perigo, sem nenhum retorno, como para a morte num avião seqüestrado.
Quando acordei vi que
nem imaginava para onde ia.
Com muito custo
consegui destravar o cinto e erguer-me dali.
Fui até a frente do
aeroplano.
Não vi ninguém.
Como a sede me
atormentava, abri uma garrafa de água mineral e bebi um gole. Aquilo me
reanimou.
Na tentativa de
explicação, e como já estivesse a ponto de entrar em pânico, fui à cabine de comando,
cuja porta encontrei trancada, mas que logo consegui abrir.
Havia o pessoal de
bordo, sim, havia, que pude ouvi-los mas não consegui vê-los.
Conversavam entre si e
riam.
Lá estavam.
Mas apareceu uma
aeromoça muito irritada comigo, criticando-me severamente por eu ter saído de
meu lugar e ir aonde não devia, por ter entrado na cabine.
Ela, sem querer ouvir
nem me deixar falar, me ordenou com impaciência e autoridade, que eu logo
retornasse à minha poltrona, que voltasse imediatamente para meu lugar, não me
dando nem tempo para formular minhas indagações e saber onde estava e para onde
ia, já revelando que não responderia às minhas indagações.
Mais conformado vi que
tudo funcionava bem, que o vôo prosseguia e não corria perigo, com serenidade
deixei-me ficar naquela desconhecida rota, viagem fantasma, como sob o sigilo e
o controle do piloto automático.
Voltei reconfortado
mas muito mais cansado com o esforço, de tal forma que me sentei no mesmo lugar
e logo adormeci, ainda sob o efeito do forte tranqüilizante.
Caí num sono profundo.
No meu sonho
considerava eu não saber onde estava, sonho que sempre se repete, não me
recordava de onde vinha, não sabia para onde ia.
Eu continuava a
sonhar.
O efeito do
tranqüilizante não passara ainda, e estava eu mergulhado numa indiferença
mortal, como que entorpecido.
Quando acordei, tinha
uma sede terrível. Minha vista se escurecia, a mente se obscurecia e desmaiava
num véu escuro povoado de alguns súbitos clarões, como relâmpagos. Tentei
erguer-me outra vez da poltrona, na intenção de informar-me outra vez com o
pessoal de bordo. Curiosamente só me lembrava de ter visto a aeromoça.
Depois de algum tempo,
consegui levantar-me. Andei. Entrei no banheiro.
Devíamos estar na
velocidade de cruzeiro, porque havia estabilidade no vôo.
Sentei-se no vaso e
desmaiei.
Uma turbulência me
acordou.
Ergui-me e voltei.
Ao passar, tive
vontade de tentar abrir a porta da aeronave. Eu sempre quis abrir aquela porta.
Mas não consegui fazer nada.
Voltei ao meu lugar e
percebi que agora existia alguém, alguma coisa que estava diferente: havia um
homem sentado ali, no mesmo lugar, dormindo.
Tentei acordar aquele
homem. Tentei acordá-lo. Mas não consegui, porque logo vi que era eu quem
estava morto ali.