segunda-feira, 17 de março de 2014

A iluminada

 






A iluminada

Rogel Samuel

Há muito que ela não ria assim. A alegria é sempre uma emoção espontânea. Há muito que ela não sentia aquela coisa, uma paz, um sentimento de felicidade, contentamento, satisfação, júbilo, perto do sonho, da leveza, aquilo era felicidade. Tudo quanto alegra, contenta, jubila, exulta, tudo leve, tudo reunido, concentrado nas poucas coisas da vida, o beber um cafezinho no botequim da esquina, o ver passar as pessoas na rua, sentar-se no banco do jardim, mesmo com o lixo acumulado e os mendigos ao redor, mesmo com aqueles mendigos que olhavam para ela com espanto, os bêbados, os meninos de rua, os vadios, os cães espalhados pelas árvores, ela olhava para todos e para tudo com seu sorriso de felicidade, de bondade, de força, de eletrizada euforia, com o brilho no olhar e o sorriso nos lábios, e aquele era seu mundo, todos eram seus irmãos filhos netos sobrinhos, todos a amavam, a respeitavam, ela estava em paz e por isso todos também se sentiam em paz, se irmanavam com ela, se beneficiavam do humor dela, daquela aura de irradiação luminosa de que ela estava vestida, expandida, iluminada.
Ela contemplava em todos a dolorosa natureza da vida, e com isso se compadecia e se irmanava com todos, numa atitude em que ela não pensava em si, mas na vida, na vida dos outros, na beleza da vida dos outros. E, apesar de seus oitenta e dois anos, pôs-se a caminhar sozinha por aquela praça tão cheia de pombos, de céu luminoso, de nuvens incandescentes, de mendigos e de assaltantes que de repente poderiam assaltá-la, ou mesmo matá-la, mas que estavam felizes, realmente felizes de a ver ali.

quarta-feira, 12 de março de 2014

A fuga no meio da noite


 


A fuga no meio da noite

Rogel Samuel

No chão cruzavam-se várias faixas coloridas. Luzes. Grossas cortinas de veludo. Um grito muito longe. Bastava um passo e estaria concluída aquela parte. Enlouqueço? Havia um longo caminho estendido, uma larga planície vazia.
- Que ventos são esses, que cortinas?
Assoviavam aterrorizantes tempestades, canções das almas dos infernos. Liberdade? Um súbito estalo o estremeceu, desde o fundo da terra, das plantas dos pés. Passos de veludo. Pelo luzidio dos lustres bailavam ondulosas bailarinas, vozes recitavam, de uma igreja, murmúrios monótonos e flautas. Sensação de quem vê a morte aproximar-se. A todas as tintas. A morte irreconhecível. Semblante de quem procura, mas não vê, reflexos nas paredes. Palpitam risadas. O universo em decantação, o tombamento. Um espetáculo de fundo de mar, vagas. Cantavam? Um monstro untuoso, disforme, que se desfazia em pasta e massa repugnante. Fluía pelos poros da testa. Música estival. Cartazes, gigantescas letras.
(Lembrou-se que continuava no palco, representava, mas não podia conceber o que fazia. Procurou divisar o auditório. Nada. Tudo morto, vazio, surdo).