segunda-feira, 20 de junho de 2022

O LIVRO IDEAL

 



Sim, tudo começou quando eu vinha com amiga por aquela feira de livros usados onde comprei um dicionário por 5 reais e continuamos a vasculhar títulos dos livros até que, na brincadeira, eu lhe disse:

- O que eu gostaria era de encontrar um livro mágico que me ensinasse: "Como enriquecer sem esforço".

E rimos muito, e dali saímos, ela para seu trabalho já atrasada; eu para um pequeno restaurante onde almocei.


Mas pensei. Durante todo o almoço não parei de pensar. Arquitetava roteiros de um livro com tal título. Sim, sim. Eu saberia, eu poderia escrevê-lo. E tudo começaria com uma estória muito antiga. De cerca de 2.500 anos. Com a história de um homem, de nome famoso. Muito rico. Nos Sutras ele aparece. Como no:

MAHAMANGALASUTTAM

(O grande discurso das bênçãos, deve ser recitado para a prosperidade):

Assim foi ouvido por mim:
Certa vez o Sublime permanecia em Savatthi, Bosque Jeta, no parque de Anathapíndika, então, em verdade, quando a noite estava avançada, certa divindade de incomparável coloração e luz, que iluminava completamente o Bosque Jeta, se aproximou do lugar onde estava o Sublime.
Tendo-se aproximado  o saudou com reverência e sentou-se a seu lado.  Depois de sentada, aquela divindade disse para o Sublime a estrofe:
“Muitos deuses e homens
discutem sobre as bênçãos
que trazem felicidade.
Por favor diga
qual a melhor das bênçãos”.

(O Sublime:)
“Não se associar aos tolos
Associar-se com os sábios
respeitar o respeitável:

esta é a melhor bênção.

E aí está o Senhor Anathapíndika.



    Anathapíndica era um homem muito rico que, naquele tempo, estava construindo um grande mosteiro para o Buda.
    Acontece que, na hora do almoço, quando ele oferecia comida para os seus operários, muitos mendigos também apareciam por ali para também participarem daquele banquete gratuito e coletivo.
    Um dos indigentes, o mais velho e doente, ao vir para almoçar, ficava contemplando a construção com os seguintes pensamentos:
    - "Ah, que maravilha!!! Como está ficando belo o mosteiro!!! Se eu pudesse estaria ali ajudando a construir esse monumento para o Senhor Buda!!! Como são fortes os trabalhadores, como trabalham com alegria!!!"
    E com esses pensamentos um dia ele faleceu.
    E depois renasceu por causa desses pensares num mais alto céu.
   
    Quem foi Anathapindika?
    "Durante a vida do Buda Shakyamuni, a esmola era uma prática comum, mas havia um patrono que se destacava do resto. Por seu altruísmo e generosidade, Sudatta, um comerciante Brahmin bem-sucedido, passou a ser conhecido como Anathapindika, o incomparável benfeitor.

Sudatta morava com sua esposa Punnalakkhana e três filhos em Sravasti, cidade que, no momento do despertar de Buda, era a maior das planícies do Ganges. Em uma de suas freqüentes viagens de negócios a Rajgir, Sudatta encontrou o ensinamento de Buddha Shakyamuni. Ele imediatamente reconheceu o Buda como seu professor. Então, prostrou-se aos pés de Buda – em um movimento estranho com o qual muitos de nós podem se identificar – e perguntou ao Abençoado se ele havia dormido bem. O Buda respondeu gentilmente:

Sempre, ele dorme bem,
O brâmane que está completamente extinto,
Que não se apega ao prazer sensual,
Serenidade no coração, é essa aquisição.
Tendo cortado todo o apego,
Tendo removido o desejo do coração,
O Pacífico, de fato, dorme bem,
Pois ele alcançou a paz de espírito.

Instantaneamente dedicado, Sudatta foi fulminado por uma decisão. Deveria se tornar um renunciante, cortar todos os apegos, desistir de sua vida mundana e seguir o Buda? E quanto às suas obrigações para com seus negócios e ao amor por sua família? Quando ele pediu conselho de Buda sobre o assunto, Buda instruiu Sudatta a permanecer um chefe de família e empresário, mas perder o apego ao seu mundanismo; continuar seu estilo de vida, mas fazê-lo de acordo com o dharma.

Sudatta convidou o Buda a vir a Sravasti e começou a procurar um lugar adequado para construir um templo. O parque mais bonito da região pertencia ao príncipe Jeta, filho de Prasenjit, o rei de Sravasti. Jeta testou o interesse de Sudatta, concordando em vender a terra conquanto Sudatta pagasse com moedas de ouro o preço de pavimentar todo o parque. Cheio de devoção, paciência e determinação, Sudatta fez o que lhe foi proposto e depois, desinteressadamente, denominou o novo parque com o nome do príncipe: Jetavana Vihara. Ele então construiu um complexo magnífico e completo, com um palácio de sete andares, templos, salões de meditação, jardins exuberantes, lagoas de lótus e passarelas para o Buda e seu séquito inteiro. Durante os próximos vinte e cinco anos, Buda e seus alunos se reuniram em Sravasti durante a época das monções e foi aqui que o mestre deu a seus discípulos os Tripitakas. Jetavana também foi o local da primeira ordenação de vinaya e o lugar onde o Sutra do Diamante foi ensinado.

Quando o Buda estava em residência, Sudatta visitava o monastério diariamente junto com os outros discípulos, nunca esperando nenhum tratamento especial do Buda simplesmente por ser seu principal benfeitor. Sudatta forneceu silenciosamente a sangha com comida, tigelas de donativos, roupões e remédios e, mais, estendeu sua generosidade também para as pessoas da cidade. Ele recebeu ensinamentos do Buda, sem dúvida. Mas se o assunto surgisse, Buda acolheria a discussão das preocupações mundanas específicas de Sudatta, usando esses exemplos como um veículo para ensinar o dharma. Buda deu a Sudatta vários ensinamentos importantes sobre riqueza e generosidade. Ele disse que existem quatro tipos de felicidades para um chefe de família: a bem-aventurança da propriedade; a felicidade de compartilhar riqueza; a felicidade de não se ver em dívidas; e a felicidade da irrepreensibilidade.

Ele disse que era bom para os leigos buscarem longa vida, beleza, felicidade, fama e renascimento em um paraíso, mas que essas coisas não podiam ser obtidas apenas pela oração ou fazendo votos. Ele explicou que apenas a perfeição da confiança no Buda, Dharma e Sangha; a perfeição da virtude; a perfeição da generosidade e a perfeição da sabedoria podem realmente trazer essas preciosas recompensas.

Através das bênçãos e dos ensinamentos do Buda, e seu próprio bom karma e mérito, Sudatta chegou ao primeiro bhumi e tornou-se conhecido como Anathapindika. Nunca voltado para proselitismo ou busca atenção, Sudatta, no entanto, influenciou a todos que o rodeavam. Seu compromisso e seu exemplo de vida inspiraram inúmeros estudantes a seguir o dharma. Ele morreu com Ananda e Sariputra ao seu lado e foi ao céu Tushita." 

(Citado do site de Dzongsar Khyentse Rinpoche).

Regozijar-se com o mérito dos outros, praticado pelo mendigo.

Portanto, regozijar-se com o mérito dos outros é progredir sem esforço, o contrário da inveja.

É uma prática extraordinário de acumular mérito, e o mérito é o propulsor do bom carma.

domingo, 24 de abril de 2022

sábado, 16 de abril de 2022

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

O VENDEDOR DE ESTRELAS


  O VENDEDOR DE ESTRELAS

Nesses dias de Natal é muito comum eu encontrar um velho amigo, homem simples e bom, envelhecido é certo, mas sempre animado e feliz.
É um vendedor de pequenos presentes de natal, tudo muito simples e barato, que bate nas casas de minha rua nessa época.
Este ano ele bateu na minha porta e disse que me estava trazendo estrelas...
Eu certamente me espantei, mas ele foi retirando de sua bolsa umas estrelas de um plástico transparente, algo brilhante e importado da China, recheado de estrelas de “strass” e pedrinhas de cristais mergulhadas em uma espécie de óleo translúcido.
As estrelas internas também eram de metal colorido, estrelinhas douradas, prateadas, coloridas, e cometas...
- As estrelas de Natal têm um papel simbólico determinante na história... – foi-me dizendo o bom velhinho vendedor - pois indica o caminho para os reis magos, como se diz em Mateus (2.2)...
- A estrela tornou-se um símbolo daquilo que de extraordinário aconteceu naquela noite. A estrela apontava para o local do nascimento do menino Jesus e mostrava a plenitude de vida que representa esta vinda de Deus ao mundo em Cristo.
O velho sorriu para mim e foi tirando uma Bíblia velha e surrada da sua mesma bolsa, abrindo na página marcada e começando a ler, simpaticamente:
- “E, tendo nascido Jesus em Belém de Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que uns magos vieram do oriente a Jerusalém, dizendo: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? porque vimos a sua estrela no oriente, e viemos a adorá-lo.
E o rei Herodes, ouvindo isto, perturbou-se, e toda Jerusalém com ele.
E, congregados todos os príncipes dos sacerdotes, e os escribas do povo, perguntou-lhes onde havia de nascer o Cristo.
E eles lhe disseram: Em Belém de Judeia; porque assim está escrito pelo profeta:
E tu, Belém, terra de Judá, De modo nenhum és a menor entre as capitais de Judá; Porque de ti sairá o Guia Que há de apascentar o meu povo de Israel.
Então Herodes, chamando secretamente os magos, inquiriu exatamente deles acerca do tempo em que a estrela lhes aparecera.
E, enviando-os a Belém, disse: Ide, e perguntai diligentemente pelo menino e, quando o achardes, participai-mo, para que também eu vá e o adore.
E, tendo eles ouvido o rei, partiram; e eis que a estrela, que tinham visto no oriente, ia adiante deles, até que, chegando, se deteve sobre o lugar onde estava o menino.
E, vendo eles a estrela, regozijaram-se muito com grande alegria” (Mateus 2:1-10).
..................
Eu logo fiquei satisfeito com aquele recitativo e assim comprei duas dúzias de estrelas que espalhei por sobre minha mesa de trabalho, voltando ao livro que estava lendo naquela hora.
Li durante quase toda a noite de Natal, li até adormecer.
No meio da noite acordo, assustado: o quarto todo acendia iluminado por uma luz dourada que provinha de diversas estrelas que se tinham estampadas no teto, nas paredes e no chão, multiplicando-se e me dando uma sensação de complexa vacuidade e ausência gravitacional como se eu estivesse pairando no espaço infinito da noite estrelada.
Pode ser uma imagem de flor

sábado, 1 de fevereiro de 2020

O NOME DO PAI

O NOME DO PAI – ROGEL SAMUEL

Na última vez que estive em Manaus resolvi passar por aquela Praça inclinada conhecida como dos Remédios.
A praça estava quase deserta sob o forte sol da tarde e só havia ali um menino com um gorro sentado num banco, imóvel, olhando fixo o grande rio que desfilava o seu negro mistério lá embaixo: o Rio Negro.
Mas ao passar eu o examinei de relance e vi que ele estava como que hipnotizado na sua contemplação sobre as águas.
Desci ainda uns dez passos e me voltei, pois minha curiosidade e estranheza me dominava para indagar e conhecer aquele estranho jovem. Teria talvez uns 16 anos.
- Dá licença, disse-lhe eu, sentando-me a seu lado, um tipo indígena, baixo, forte, cabelos muitos lisos, olhos amendoados fixos no horizonte.
Ele nada respondeu, fez apenas com enfado um gesto com a boca que parecia dizer “tanto faz você sentar aí, ou em outro lugar”.
- Como você se chama, insisti.
- Oceano, ele respondeu.
- Como? Indaguei, espantado.
- Oceano, disse-me ele outra vez, ou foi o que eu ouvi daquele seu sotaque espanhol.
- De onde você é, continuei, e ele me contou que era boliviano, que atravessou a fronteira para fazer compras para a mãe, a família pai, mãe e irmãs, mas não conseguiu regressar para a casa, fecharam a estrada e ele acabou sendo jogado em Manaus sem ter para onde ir.
Fiquei emocionado, esperando, mas nada mais falou.
Naquele momento passa uma bicicleta vendendo quentinhas de almoço, paguei e esperei para vê-lo comer com fúria, beber com sede o copo de refresco que vinha junto e me levantei para partir.
Foi só quando já tinha dado dez passos que escutei a sua voz:
- “Espera, como te llamas ? Cuándo lo volveré a ver?” – e senti uma aflição em suas palavras.
Pensei em lhe dizer a verdade, que voltava para o Rio de Janeiro naquela mesma noite, que nunca mais o veria, mas me lembrei de que ele estava só, sem pai, nem mãe e irmãs, e por isso menti:


- Em breve, disse-lhe eu, e atravessei a rua, sem lhe dar meu nome.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Auto de Natal em Copacabana

Auto de Natal em Copacabana


(Madrugada. Calçadão, perto do Copacabana Pálace):
- Venham, irmãs! Acorrei com suas glórias! O Filho do Senhor acaba de nascer!
(E logo, múltiplas Graças vestidas de bruma se reúnem em festa ao redor de  adolescente negra, moradora de rua, que acaba de dar à luz na calçada. É uma garota negra, sorridente e feliz, chamada Maria. O Pai, um desempregado cearense alcoólatra, de nome José, sujo e sem nada entender, achando que vai ter confusão e polícia, atravessa a rua e some na praia escura, com uma garrafinha de plástico branca nas mãos. As Graças, que se sabem ser oniscientes, tornam-se invisíveis para não chamar atenção, mas não há quase ninguém por perto, além de raros porteiros e seguranças com celulares nas mãos.
Das varandas luminosas dos prédios de luxo vem forte som de música de suas festas de Natal. Dançam. Um grupo animado de jovens bêbados passa gritando num carro. O vento interior vem do mais longínquo mar com sua ressonância salgada e boa, para homenagear o Filho do Homem. Maria, a jovem parturiente, agasalha-o nos trapos de que dispõe, mas vêm surgindo de algumas portas os próprios Reis Magos que lhe trazem ofertas de sedas, além de presentes diversos: doces, frutas, pães, vinho. Uma grande estrela está imóvel no céu, mas ninguém a vê e pensam que é um balão atmosférico. Anjos, Espíritos e Santos de diversas seitas e Igrejas cercam o Menino e sua Mãe, invisíveis aos mortais. Um silêncio luminoso invade os céus de Copacabana, sim, porque o Filho de Deus acaba de nascer, trazendo bênçãos e esperança para todos. Nos morros, o batuque de Pais e Mães de Santo celebram a sua Glória. Nas Igrejas, padres liberam hinos elevados em sua homenagens. Taças de champanhe circulam nas mãos das madames ricas em festas particulares e brindam o pequeno. As crianças, já dormindo, sonham com ele vestido de Papai Noel, com ricos presentes de Natal. Os namorados se amam e se beijam nos becos e apartamentos, e exultam a sua gloriosa chegada.
Uma patrulha da polícia passa e olha para aquela estranha reunião e resolve investigar. Mas os anjos do Senhor espalham uma névoa nos olhos dos policiais e eles resolvem ir embora.
Porque no chão da Avenida Atlântica o filho de Deus acaba de nascer, agora cercado de uma população noturna que veio homenageá-lo e participar de sua ceia.


No ar, invisíveis, mas luminosos, os deuses celebram sua Glória e incensam o ar. E rezam para que o Menino se torne Homem e não seja crucificado, morto ou fuzilado a carpir a nossa culpa nos porões das masmorras de nossas prisões ou nos terrenos baldios e pantanosos das favelas!)

segunda-feira, 17 de março de 2014

A iluminada

 






A iluminada

Rogel Samuel

Há muito que ela não ria assim. A alegria é sempre uma emoção espontânea. Há muito que ela não sentia aquela coisa, uma paz, um sentimento de felicidade, contentamento, satisfação, júbilo, perto do sonho, da leveza, aquilo era felicidade. Tudo quanto alegra, contenta, jubila, exulta, tudo leve, tudo reunido, concentrado nas poucas coisas da vida, o beber um cafezinho no botequim da esquina, o ver passar as pessoas na rua, sentar-se no banco do jardim, mesmo com o lixo acumulado e os mendigos ao redor, mesmo com aqueles mendigos que olhavam para ela com espanto, os bêbados, os meninos de rua, os vadios, os cães espalhados pelas árvores, ela olhava para todos e para tudo com seu sorriso de felicidade, de bondade, de força, de eletrizada euforia, com o brilho no olhar e o sorriso nos lábios, e aquele era seu mundo, todos eram seus irmãos filhos netos sobrinhos, todos a amavam, a respeitavam, ela estava em paz e por isso todos também se sentiam em paz, se irmanavam com ela, se beneficiavam do humor dela, daquela aura de irradiação luminosa de que ela estava vestida, expandida, iluminada.
Ela contemplava em todos a dolorosa natureza da vida, e com isso se compadecia e se irmanava com todos, numa atitude em que ela não pensava em si, mas na vida, na vida dos outros, na beleza da vida dos outros. E, apesar de seus oitenta e dois anos, pôs-se a caminhar sozinha por aquela praça tão cheia de pombos, de céu luminoso, de nuvens incandescentes, de mendigos e de assaltantes que de repente poderiam assaltá-la, ou mesmo matá-la, mas que estavam felizes, realmente felizes de a ver ali.