quinta-feira, 10 de março de 2011

DUAS ESTORINHAS



Rogel Samuel

O velho estaciona o automóvel preto no meio fio, tranca-o
cuidadosamente. Tem as chaves nas mãos. Desce a velha amurada de pedra da Urca. O velho parece feliz. Tira a camisa, as calças. Tira o sapato. Esconde a roupa toda numa lapa do muro. Em cuecas, mergulha nas águas.
Nada, afasta-se da margem. O velho parece feliz. Afasta-se cada vez mais. Em sua cadência lenta de velho, continua. Só os braços agora aparecem, fora da linha d'água. Eu o observo, atento e curioso. Não há ninguém para vê-lo, além de mim. Estamos sós, o sol abre seu leque de diamantes. Ele se afasta cada vez mais, eu me afasto, vou para meu
destino. Continuo a vida. Dias depois, saindo de casa, passo pelo mesmo muro: o automóvel preto continuava lá.

* * *

Meu pai tocava piano, e passou a vida estudando violino. Certa vez, viajava pelo interior do Amazonas, como sempre fazia, e começou a praticar a partita de Bach. Ele usava sua própria lancha, acompanhado de um jovem caboclo calado, índio silencioso, que lhe servia de marinheiro.
Meu pai aprendera a tocar violino em Strasburgo. Desde criança. Era francês. A partita tinha de ser repetida, horas repassavam as partes difíceis, A viagem prosseguia. Suas viagens eram longas, ele se ausentava de nossa casa às vezes por um mês, a serviço do BASA, onde era "fiscal rural", ou seja, quem verificava os seringais e plantações de juta.
Passaram-se muitos anos.
Um dia, bem mais velho meu pai, viajava pelo Rio Juruá teve de pernoitar onde se realizava a festa. Bebia-se e dançava-se durante a noite, e ele foi convidado, no lugar todo funcionário público (ou privado) era "autoridade". Uma indelicadeza recusar.
Num intervalo da festa um dos músicos se apresentou:
-- Não me conhece, sr. Samuel?
Meu pai não se lembrava. Aí o homem perguntou:
-- O senhor ainda toca aquela musiquinha?
E tocou a Partita n. 1 de Bach ao violão.

Nenhum comentário: