quinta-feira, 10 de março de 2011
ENCONTRO
Rogel Samuel
Porque poucas eram as oportunidades de experimentar o que ele sentia naquela noite tão incomum: a junção do ar poluído da cidade grifando as palavras, quando até pensar doía, e quando as dobradiças da cabeça se transformavam naquela circunferência aparentemente vazia, ou melhor, cheia do árduo vácuo do pensamento de dor dissimulado nos ruídos da noite fendida pela aceleração forte dos ônibus negros e aqueles radiação multicolorida de faiscantes anúncios, tudo muito bom, tudo muito moderno - a junção da poeira dos ventiladores por onde ele passava infiltrando-se para dentro no limiar de histórico pânico de uma cidade assentada naquela horizontalidade em que tudo se subtraía das coisas e eram tudo involuntárias armas se recompondo mais além da sua jaqueta de couro justa, cintada, sim, que eram poucos os atos que ele ainda podia representar, como passar a palma da mão sobre os olhos (para não chorar), ou meter o dedo no bolso, levantar a camisa sobre os ombros e, veloz, seguindo na motocicleta pela lâmina de asfalto molhada da rua negra por onde retornavam os pesados caminhões em direção à ponte, e daqueles edifícios abandonados vinha e fazia-se ouvir o tilintar insistente e longínquo de um telefone no escuro e uma viatura da polícia escura - eram sete pessoas até agora, contando com os policiais, os homens da calçada e o chofer passando pela área do poste de iluminação mas com pouca luz, ou melhor, a luz não penetrava a barreira da fumaça densa que a tudo envolvia com sua noite - o caminho era na praça deserta por onde ele se vai, projetado - elisão de lugar - não está lá, não foi, nem sei - elisão de tempo e de pessoa - e então, sem saber como, ele pode ver o que nem mesmo por pensamento, ou palavra ou gesto continuava a ser, o que tinha sempre sido até aquela hora: um negativo, um não, sem solução. E fez a única coisa a seu alcance: recordou-se de si, personagem de ficção. (15/2/87).
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